Ficha de referência cultural
Largo com bandeira LGBTQIA+, instaladas pela Prefeitura de São Paulo em 2016. Fonte: Marcio Claesen/ Guia Gay São Paulo
O Largo do Arouche é um espaço público que fica na região central da cidade de São Paulo, próximo do
metrô República, entre a Avenida São João e o Elevado João Goulart - Minhocão. É uma histórica
centralidade LGBTQIA+ e configura juntamente com as ruas da proximidade – como a Vieira de
Carvalho e a Rego Freitas – uma importante região para essa comunidade. O relatório da
Comissão da Verdade, em seu capítulo 7, atenta para as perseguições que aconteciam no local,
principalmente focando nos grupos das travestis e transsexuais, durante a ditadura militar. Na
década de 1980, a região foi palco de uma manifestação de grupos de negros, feministas, estudantes
contra a repressão em que culminaram com o grito "O Arouche é nosso!", demonstrando o uso plural e
reprimido da região. Hoje, o Arouche ainda abriga a comunidade LGBTQIA+, sendo um ponto de encontro
de gays, lésbicas, travestis, transsexuais, góticos e qualquer um que queira explorar sua identidade
vindos de diversas regiões da cidade, principalmente da periferia, mas também do interior do estado.
Há muitos bares, boates, saunas e motéis no Largo, mas também nas imediações. Não é incomum que
ocorram shows voltados para a comunidade LGBTQIA+ no largo, como é o caso dos que ocorrem na Virada
Cultural.
Desde os anos 1950, com a mudança do perfil econômico da região do centro expandido (República), na
esteira do processo de degradação e desvalorização do centro, o Largo do Arouche representa uma
centralidade histórica LGBTQIA+. Nesse sentido, para Neon Cunha, o Arouche não é só uma praça, “o
arouche era o ponto de encontro, era a convergência, para fugir da polícia, porque a praça era
belíssima, porque a mona já tinha feito europa e vinha fazer trottoir no arouche, era lugar de
pegação [...]”. Nesse mais de meio século de história pudemos notar a permanência de alguns marcos
espaciais, como o Mercado das Flores, mas também o desaparecimento de outros, como o banheiro
público (cuja desativação pode se relacionar ao uso sexual do espaço, notadamente dos michês) que
existia no Largo.
Hoje o público LGBTQIA+ que frequenta o espaço é constituído em sua maioria por jovens da periferia
da cidade e, eventualmente, pessoas do interior do estado e também de outros países. Domingo à noite
é o horário de maior uso até a meia noite, horário que o metrô fecha e quando muitos precisam voltar
para suas casas, em regiões mais distantes do centro. É comum que os jovens bebam bebidas alcoólicas
no Largo antes de frequentar as baladas da região, como a Freedom e a Cantho, enquanto que muitos
dos gays mais velhos ficam na “praia”, região lindeira ao largo com uma série de botecos e bares,
além daqueles das proximidades. Como o perfil social dos frequentadores é de pessoas de baixa renda,
periféricas e negras, é comum que elas estejam em situação de vulnerabilidade social, o que as
conduz a integrar uma das “famílias” que lá existem. A criação de famílias surgiu a partir da ação
de acolhimento que travestis ofereciam, entre elas Brenda Lee que inspira o modelo atual de famílias
LGBTQIA+ brasileiras. Com o tempo as famílias LGBTQIA+ foram reduzindo e se modificando, mas mantém
como local de origem e identidade o Largo do Arouche. Importante destacar que muitas das pessoas
entrevistadas justificam sua predileção pelo Largo do Arouche pois em outros espaços LGBTQIA+, como
a Rua Augusta e Frei Caneca, elas são discriminadas por sua classe econômica e etnia.
Muitos entrevistados também falaram do aumento do custo de vida na região e de como a presença da
Polícia Militar não garante mais segurança. A valorização imobiliária na região não é um fenômeno
isolado, mas ganha contornos específicos neste caso. Assim como ocorreu na rua Frei Caneca, o
Arouche hoje passa por um processo de gentrificação ligado a uma estratégia de mercado que direciona
os novos empreendimentos ao público LGBTQIA+, em especial aos homens gays de classe média e
média-alta (há quem denomine o fenômeno de “gaytrificação” dada essa especificidade). Esse fenômeno
pôde ser visto em diversos outros lugares, como nos bairros Castro na cidade norte-americana São
Francisco, e Marais em Paris.
Via de regra, regiões marginalizadas que historicamente são ocupadas por homens gays que exploram o
potencial sexual de tais espaços criam uma cultura gay. Esse estilo de vida é entendido como valor
para o mercado imobiliário, que então usa de tal narrativa para vender unidades nessas regiões,
expulsando tanto gays mais pobres que frequentam a região, quanto lésbicas, travestis, transexuais,
etc.
Na gestão de Bruno Covas e João Dória na cidade de São Paulo, houve tentativa de transformação do
Largo do Arouche em "Petit Paris” ou “Boulevard Francês”. Uma estratégia gentrificadora que
pretendia “recuperar” o projeto original de urbanismo francês da praça, apagando toda a ocupação e
reapropriação histórica do Arouche. A palavra “revitalização” por muitas vezes foi utilizada para
descrever a proposta do projeto de inspirações francesas, porém, essa nomenclatura não só desconhece
como invisibiliza a ocupação existente no Arouche que é envolvida pelas tramas do amor, conflito,
disputa, música, cães e até o próprio verde, pode ser muitas coisas menos vazia de energia vital.
Em maio de 2019, a prefeitura de São Paulo deu início a um projeto urbanístico na região, uma
reformulação da proposta anterior, que foi alvo de críticas pelo seu aspecto e origens higienistas,
que ameaçavam a presença da diversidade dos moradores e usuários, assim como suas culturas,
favorecendo o consumidor com maior poder aquisitivo e desconfigurando o caráter histórico da região.
Como forma de manifesto, os tapumes das obras foram hackeadas com imagens do projeto de documentação
fotográfica e audiovisual dos ocupantes desse espaço histórico de resistência LGBTQIA+ na cidade de
São Paulo, Famílias no Arouche. O projeto é da Casa da Lapa e integração/participação do Coletivo
Arouchianos.
Além das questões sociopolíticas que envolvem o território, o Largo do Arouche também é marcado pela
arborização e questões socioambientais de saneamento básico. São destaques na praça a Chichá
(Sterculia striata), árvore centenária que comumente é lembrada por remontar o passado da cidade de
São Paulo; e a figueira ou falsa seringueira (Ficus elastica), memorável enquanto uma das árvores de
maior porte presentes na praça, bem como por ser ponto comum para urinar. Essas duas árvores são
elementos que possuem forte correlação com a memória uma vez que tem a capacidade de remontar
memórias afetivas do passado dos frequentadores. É importante ressaltar que a presença de árvores no
espaço público possibilita experiência com a natureza, sombra, umidade e sensação de conforto e
bem-estar. Porém, apesar desse aspecto, a região é marcada por questões socioambientais que envolvem
a urina em espaço público como ocorre na figueira e nos arredores do mercado das flores. O cheiro de
urina é comumente lembrado por frequentadores da região e denuncia a ausência de banheiro público.
Coletivo Arouchianos
Entrevista com Neon Cunha, realizada em junho de 2022.
WikipraçaSP Arouche • Cartografia Largo do Arouche - Wikipraça / Wikipraça SP Arouche • Kumu Acesse aqui
SCIFONI, Simone; BEUCLAIR, Helcio. Largo do Arouche, São Paulo. Por um Patrimônio LGBTQIAPD+ Nacional. Nakamuta, Adriana (org). Arte, cidade e patrimônio: futuro e memória nas poéticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Automática Edições, 2021.
REPEP. Dossiê do Inventário Participativo Minhocão contra gentrificação. São Paulo, 2019. Acesse aqui
OUTRAS REFERÊNCIAS CULTURAIS RELACIONADAS
Atividades Culturais de Rua, Calendário LGBTQIA+, Chichá, Famílias LGBTQIA+, Estátua Luiz Gama,
Estátua Depois do Banho, Estátua Amor Materno